sábado, 15 de setembro de 2012

MORRER EM CASA, NASCER NO HOSPITAL


Morrer em casa, nascer no hospital

Dr Rodrigo Biondi fala sobre o testamento vital
Fonte : AMIB


No dia 30 de agosto, foi publicado no site do Conselho Federal de Medicina (veja na íntegra em http://migre.me/aDxaJ) as normas para a diretiva antecipada de vontade, mas já conhecido como testamento vital. Esse é considerado um avanço na abordagem aos pacientes que estão hoje sendo submetidos a tratamentos considerados fúteis por falta de discussão ampla sobre suas alternativas no final de sua vida.
Outros países já lidam com esse tema há muitos anos, respeitando o desejo do paciente diante de um momento em que ele não pode decidir. Nesta resolução, vale ressaltar, é necessária total capacidade intelectual do paciente, de forma que deve ser feita em momento prévio ao estado terminal que se apresente. 
Isso está correto, em acordo com o Código e Ética Médica, em que devemos compartilhar com o paciente as opções de tratamento e respeitar seus desejos. O problema é que poucas pessoas pensam em como desejariam passar seus últimos momentos antes que esse momento chegue. E a forma do acesso das pessoas ao sistema de saúde brasileiro, em que é cada vez mais incomum a figura do médico assistente, que acompanha a evolução da saúde de um paciente por anos, dificulta ainda mais essas possibilidades.  
O problema é muito complexo. Lidamos diariamente com o inexorável. Hoje um paciente de meia idade chega num pronto socorro lotado com quadro de AVC com tempo hábil para trombólise. A triagem não foi eficiente e ele não foi eleito para essa terapia que poderia mudar a história natural da doença. Ele é admitido depois de horas e, apesar de sinais clínicos de tratar-se de um AVC de grande território, fica num leito da emergência. No dia seguinte um residente vai vê-lo, já com saturação baixa, febril... Quadro de pneumonia, o paciente já com uma sequela neurológica irreversível. Os familiares encontram-no naquela emergência, mas ele não os reconhecem. Está preso em seu mundo e dali nunca mais sairá. Esse paciente fez seu testamento vital? Ele não teve oportunidade, apesar de ter pensado no assunto após ver uma reportagem numa revista semanal. 
A consulta com seu médico, dias antes, foi muito rápida, deu apenas para trocar a receita do antihipertensivo. Havia muitos outros pacientes esperando e ele não se sentiu à vontade para tratar desse tema. Também pensou: "estou bem, não preciso pensar nisso hoje". Mas e se tivesse falado com seu médico, aquele do consultório? Talvez de nada adiantaria, pois os prontuários no Brasil, salvo raras exceções, não são unificados. O médico daquela emergência passou o caso para o intensivista e este nada sabe sobre os desejos declarados. O paciente é acoplado à ventilação mecânica e dias após inicia hemodiálise. "Não era isso que eu queria!" grita ele dentro de seu corpo imobilizado. Punções, drenos, coletas de gasometrias seriadas... muita dor, tratando muito bem a doença e maltratando o doente. A família, cheia de esperanças de tê-lo de volta. Chega o tão esperado dia da alta da UTI e ele vai para casa no Home Care, sem poder ao menos se comunicar.  
Cabe pensar se esse avanço vai realmente valer para todos. O exemplo acima ocorre diariamente em vários hospitais públicos e privados desse país. Podemos mudar a patologia, mas o problema maior é o de acesso. Acesso a uma medicina de qualidade, que atenda seus pacientes de forma humana. Acesso a informação, a ruptura de barreiras culturais em que se pensa que investimento no paciente significa tratamento fútil e que cuidados paliativos é igual a deixar morrer sem assistência. Cuidados paliativos bem feito é muito complexo, demanda tempo, dedicação e conhecimento. Em nenhum momento o objetivo é abreviar a morte; muito pelo contrário, é aliviar o sofrimento e oferecer qualidade de vida. Oferecer momentos de prazer para quem tem pouco a esperar. Quantas pessoas têm acesso a isso? Ou melhor, quantos sabem que esse tratamento também é uma opção? Um grande mérito dessa resolução, talvez, venha à tona agora, em que muito será debatido e será exposto que é possível e ético oferecer dieta por via oral para aquele paciente com dificuldade de deglutição, pois comer é uma das coisas que mais lhe dá prazer. E depois tratar com carinho sua pneumonia, se assim ele desejar. Mitos e paradigmas cairão e novas verdades serão ditas. Verdades individuais, com respeito à vontade de paciente. 

Há pouco mais de um mês houve uma passeata de mães que reivindicavam o direito de dar à luz a seus filhos em casa. Alegam, entre outras coisas, que a gestação e o parto não são eventos patológicos. Até esse ponto elas estão certas, mas o risco associado de seqüelas irreversíveis no caso de qualquer complicação (e elas podem acontecer) é imenso. Outro agravante é que essa mãe, que ama muito seu filho que está por vir, está tomando uma decisão que coloca em risco não só sua vida, mas também a de seu pequeno filho. Muito se falou, várias reportagens foram publicadas pelo direito de se escolher onde será o nascimento... vejamos se agora, diante da resolução do CFM, veremos marchas ou passeatas pelo direito de morrer também de forma humanizada, longe de bips e tubos, mas ao lado dos seus familiares, em sua casa, na sua própria cama, como acontecia décadas atrás. Com a assistência correta isso é possível.

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