Morrer em casa, nascer no hospital
Dr Rodrigo Biondi fala sobre o testamento vital
Fonte : AMIB
No dia 30 de
agosto, foi publicado no site do Conselho Federal de Medicina (veja na íntegra
em http://migre.me/aDxaJ)
as normas para a diretiva antecipada de vontade, mas já conhecido como
testamento vital. Esse é considerado um avanço na abordagem aos pacientes que
estão hoje sendo submetidos a tratamentos considerados fúteis por falta de
discussão ampla sobre suas alternativas no final de sua vida.
Outros
países já lidam com esse tema há muitos anos, respeitando o desejo do paciente
diante de um momento em que ele não pode decidir. Nesta resolução, vale
ressaltar, é necessária total capacidade intelectual do paciente, de forma que
deve ser feita em momento prévio ao estado terminal que se apresente.
Isso está
correto, em acordo com o Código e Ética Médica, em que devemos compartilhar com
o paciente as opções de tratamento e respeitar seus desejos. O problema é que
poucas pessoas pensam em como desejariam passar seus últimos momentos antes que
esse momento chegue. E a forma do acesso das pessoas ao sistema de saúde
brasileiro, em que é cada vez mais incomum a figura do médico assistente, que
acompanha a evolução da saúde de um paciente por anos, dificulta ainda mais
essas possibilidades.
O problema é
muito complexo. Lidamos diariamente com o inexorável. Hoje um paciente de meia
idade chega num pronto socorro lotado com quadro de AVC com tempo hábil para
trombólise. A triagem não foi eficiente e ele não foi eleito para essa terapia
que poderia mudar a história natural da doença. Ele é admitido depois de horas
e, apesar de sinais clínicos de tratar-se de um AVC de grande território, fica
num leito da emergência. No dia seguinte um residente vai vê-lo, já com
saturação baixa, febril... Quadro de pneumonia, o paciente já com uma sequela
neurológica irreversível. Os familiares encontram-no naquela emergência, mas
ele não os reconhecem. Está preso em seu mundo e dali nunca mais sairá. Esse
paciente fez seu testamento vital? Ele não teve oportunidade, apesar de ter
pensado no assunto após ver uma reportagem numa revista semanal.
A consulta
com seu médico, dias antes, foi muito rápida, deu apenas para trocar a receita
do antihipertensivo. Havia muitos outros pacientes esperando e ele não se
sentiu à vontade para tratar desse tema. Também pensou: "estou bem, não
preciso pensar nisso hoje". Mas e se tivesse falado com seu médico, aquele
do consultório? Talvez de nada adiantaria, pois os prontuários no Brasil, salvo
raras exceções, não são unificados. O médico daquela emergência passou o caso
para o intensivista e este nada sabe sobre os desejos declarados. O paciente é
acoplado à ventilação mecânica e dias após inicia hemodiálise. "Não era
isso que eu queria!" grita ele dentro de seu corpo imobilizado. Punções,
drenos, coletas de gasometrias seriadas... muita dor, tratando muito bem a
doença e maltratando o doente. A família, cheia de esperanças de tê-lo de
volta. Chega o tão esperado dia da alta da UTI e ele vai para casa no Home
Care, sem poder ao menos se comunicar.
Cabe pensar
se esse avanço vai realmente valer para todos. O exemplo acima ocorre
diariamente em vários hospitais públicos e privados desse país. Podemos mudar a
patologia, mas o problema maior é o de acesso. Acesso a uma medicina de
qualidade, que atenda seus pacientes de forma humana. Acesso a informação, a
ruptura de barreiras culturais em que se pensa que investimento no paciente
significa tratamento fútil e que cuidados paliativos é igual a deixar morrer
sem assistência. Cuidados paliativos bem feito é muito complexo, demanda tempo,
dedicação e conhecimento. Em nenhum momento o objetivo é abreviar a morte;
muito pelo contrário, é aliviar o sofrimento e oferecer qualidade de vida.
Oferecer momentos de prazer para quem tem pouco a esperar. Quantas pessoas têm
acesso a isso? Ou melhor, quantos sabem que esse tratamento também é uma opção?
Um grande mérito dessa resolução, talvez, venha à tona agora, em que muito será
debatido e será exposto que é possível e ético oferecer dieta por via oral para
aquele paciente com dificuldade de deglutição, pois comer é uma das coisas que
mais lhe dá prazer. E depois tratar com carinho sua pneumonia, se assim ele
desejar. Mitos e paradigmas cairão e novas verdades serão ditas. Verdades
individuais, com respeito à vontade de paciente.
Há pouco
mais de um mês houve uma passeata de mães que reivindicavam o direito de dar à
luz a seus filhos em casa. Alegam, entre outras coisas, que a gestação e o
parto não são eventos patológicos. Até esse ponto elas estão certas, mas o
risco associado de seqüelas irreversíveis no caso de qualquer complicação (e
elas podem acontecer) é imenso. Outro agravante é que essa mãe, que ama muito
seu filho que está por vir, está tomando uma decisão que coloca em risco não só
sua vida, mas também a de seu pequeno filho. Muito se falou, várias reportagens
foram publicadas pelo direito de se escolher onde será o nascimento... vejamos
se agora, diante da resolução do CFM, veremos marchas ou passeatas pelo direito
de morrer também de forma humanizada, longe de bips e tubos, mas ao lado dos
seus familiares, em sua casa, na sua própria cama, como acontecia décadas
atrás. Com a assistência correta isso é possível.
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